Acusado de estupro é solto após quase 3 anos preso; documentos da ação sumiram
26/11/2013 - 03h00 – FOLHA -
COTIDIANO
LAURA
CAPRIGLIONE DE SÃO PAULO
O técnico em refrigeração Maurício (o nome é
fictício), 49, passou dois anos, oito meses e 11 dias preso no Centro de
Detenção Provisória 2 de Pinheiros, zona oeste de São Paulo. A acusação contra
ele é grave: estupro contra uma enteada --tipificado como crime hediondo,
passível de 8 a 12 anos de reclusão.
Na semana passada, a
Justiça de São Paulo soltou Maurício. Mas não porque se tenha provado sua
inocência. Tampouco porque ele tenha cumprido pena.
A libertação ocorreu por
uma incrível trapalhada daqueles que deveriam aplicar a lei para proteger a
sociedade.
Nas palavras da
coordenadora do arquivo do Fórum Criminal da Barra Funda, "após várias
buscas nas dependências do cartório, não se logrou êxito em encontrar" o
processo contra Maurício. Sumiu, evaporou, desapareceu.
Como ninguém pode ficar
preso sem processo, o jeito foi soltar o homem.
DESESPERADOS
O acusado jura inocência.
A Folha encontrou-o no
dia seguinte ao da libertação, na igreja de São Judas Tadeu, vizinha à casa do
irmão, zona sul de São Paulo. São Judas, diga-se, é o patrono causas perdidas e
desesperadas. "Esqueceram de mim naquele inferno", disse, chorando.
Ele pediu que sua
identidade fosse mantida em segredo.
Segundo o juiz Rodrigo
Capez, assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP),
"admite-se a prisão provisória (antes da sentença) por um prazo máximo de
seis meses. Quando as testemunhas ou vítimas precisem ser ouvidas em outros
Estados, admite-se prazo de um ano."
A prisão provisória de
Maurício foi de três a seis vezes mais extensa. A desembargadora que determinou
a libertação, Rachid Vaz de Almeida, admitiu o "excesso de prazo na
formação de culpa".
"Eu pedia todo dia
para Deus me matar. Até uma cova seria melhor do que aquilo", lembrou
Maurício.
"A comida vinha
azeda, nem cachorro come; apertavam-se 34 pessoas em uma cela para oito
pessoas; dormi no chão todos os dias; o banho podia durar o máximo de um
minuto; vivi sem meu nome; eu era um número (da matrícula)". E havia a
opressão dos demais presos -o estuprador é considerado "verme" na
cadeia.
Fabio Braga/Folhapress | |
Maurício (nome fictício) deixa Centro de Detenção Provisória em São Paulo; o processo dele sumiu de fórum |
SEM
PROGRESSÃO
A peculiaridade dos
Centros de Detenção Provisória (que os internos chamam de Centro de Depósito de
Presos) é que neles vivem homens ainda sem condenação. O que deveria ser uma
vantagem, na prática, transforma-se em prejuízo.
Os detentos provisórios
não podem trabalhar para descontar dias de prisão, não têm direito a progressão
de pena (quando se consegue o direito a, por exemplo, um regime semiaberto).
Ninguém sabe explicar
como o processo desapareceu. No dia 6 de março do ano passado, aparece nos
registros, que a pasta com o caso de Maurício foi enviada ao Ministério
Público. Foi a última vez que se ouviu falar dela.
O acusado pedia
informações do andamento do processo. O advogado contratado pela família dizia
que o caso já tinha "subido": estaria aguardando decisão no STF
(Supremo Tribunal Federal).
Mas era mentira. No site
do Tribunal de Justiça de São Paulo, o caso estava parado.
Ao todo, São Paulo tem 20
milhões de processos físicos (isto é, não digitalizados). Segundo Capez, a
pasta com capa de cartolina que continha o processo de Maurício pode ter sido
colocada por engano em uma caixa de arquivo.
BURACO
NEGRO
Neste caso, seria como se
os laudos do Instituto de Criminalística e do Instituto Médico Legal, além da
transcrição dos depoimentos das testemunhas e os documentos juntados ao
processo, fosse, tudo junto, sugado por um buraco negro. Impossível achar.
O advogado de Maurício teria
de exigir o andamento do processo. Ou a família. Ou o juiz corregedor do
presídio. Mas, segundo Capez, "houve um blecaute de providências".
No meio do
"blecaute", Maurício estaria no CDP até agora, se não tivesse topado
com a advogada Priscila Pamela dos Santos, voluntária do Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD).
Ela ministrava aulas de
educação para a cidadania a uma turma de 24 presos, Maurício entre eles.
Priscila descobriu o
desaparecimento do processo e pediu a libertação, que foi afinal concedida no
dia 19.
O processo, agora, terá
de ser "restaurado". Remontado para que possa, enfim, resultar em uma
sentença.
Segundo Capez, essa
restauração demorará pelo menos um mês para ser feita. Pode ser mais.
Maurício tenta retomar a
vida normal. O irmão, corretor de seguros, dispõe-se a ajudá-lo na volta à
sociedade, inclusive empregando-o.
O advogado que cuidava do
processo de Maurício foi destituído. Ele não foi encontrado pela reportagem.
À advogada que conseguiu
a libertação:
a Folha perguntou: "E se ele for mesmo um estuprador, agora
à solta?"
Resposta: "E se ele for um inocente que foi submetido a uma prisão absurda, sem sentença condenatória?"
Resposta: "E se ele for um inocente que foi submetido a uma prisão absurda, sem sentença condenatória?"
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