sábado, 25 de outubro de 2014

Noticia mentirosa destrói família

Foi numa segunda-feira, 28 de março de 1994, que a mídia iniciou uma série de erros e mentiras na falta de conduta ética e jornalística mais clássica da década de 90. O caso da Escola de Educação Infantil Base, referência negativa para o meio jornalístico, fatídico para os envolvidos foi o episódio negro do que se convencionou chamar de jornalismo sensacionalista. Algo que 11 anos depois faz raciocinar as amarras e relações éticas da mídia, do compromisso com a verdade e não com a vendagem, de como uma mentira pública pode destruir a integridade de seres humanos e da promíscua relação com a fonte oficial. Se a idéia era chocar a opinião pública, conseguiu, mas atirou no próprio pé e prejudicou muita gente.
O fio da meada
Antes do "circo da mídia" duas mães, Cléa Parente de Carvalho e Lúcia Eiko Tanoue, procuram a polícia na região da Aclimação, São Paulo, no 6º Distrito, com uma denúncia de abuso sexual contra seus filhos de 4 anos, alunos da Escola Base. A queixa era contra os donos da escola, Icushiro Shimada e sua esposa Aparecida Shimada e o casal de sócios Paula e Maurício Alvarenga. Segundo elas essas pessoas organizavam orgias sexuais com a participação de seus filhos, filmando e fotografando tudo. Além destes, outro casal foi acusado pelas duas mães, Saulo e Mara Nunes, pais de outro aluno da Base. À época, a TV Cultura noticiou: "Lúcia ouviu seu filho dizer que, junto de Carla, foi à casa de um coleguinha da escola, Ronaldo, 4 anos, filho do casal Saulo e Mara Nunes. Contou ter visto filmes de 'gente pelada', que batiam 'fotos' e havia cama redonda. Tudo isso aconteceria durante o horário das aulas, e as crianças seriam levadas para fora da escola na Kombi de Maurício".
O circo estava armado
O delegado de plantão era Antonio Primante, mas quem o substituiu no caso foi Edélcio Lemos. Primante fez o dever de casa: encaminhou as duas crianças para exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal (IML) e com um mandato de busca e apreensão, dirigiu-se ao apartamento de Saulo e Mara Nunes, acompanhado de seis policiais, Cléa e Lúcia. No apartamento nada encontraram além de uma cama retangular, uma fita de vídeo com um show do cantor Fábio Jr. e filmes da máquina fotográfica do casal. Na escola encontraram uma coleção com fitas de Walt Disney. "Eram 17h30 da tarde, mais ou menos, estávamos lá dentro conversando. De repente toca a campanhia e desci para abrir o portão. Abri o portão e a rua tava cheia. Delegado me segurou: polícia!", relata Icushiro Shimada. Sem provas eles retornaram com as mães para a delegacia. O Diário Popular foi o único veículo a acompanhar as buscas no dia 28 e também o único que nada noticiou durante os quase três meses de caso. Na época, o diretor Jorge de Miranda Jordão percebeu, de início, as contradições do episódio. Já na delegacia Cléa Parente telefonou para a Rede Globo e com a chegada da reportagem a polícia resolve escutar os acusados.
Um erro após o outro
A barbárie noticiosa começou pelo jornalismo do Jornal Nacional e a mídia grande bebeu as denúncias sem duvidar da veracidade. No dia 30 um telex do IML já adiantava o resultado parcial do exame do menino Fábio, filho de Lúcia: "Referente ao laudo nº 6.254/94 do menor F.J.T. Chang, BO 1827/94, informamos que o resultado do exame é positivo para a prática de atos libidinosos. Dra. Eliete Pacheco, setor de sexologia, IML, sede". O resultado parcial bastou. Mesmo sem provas e percebendo a sede dos jornalistas pelo episódio o delegado Edélcio virou celebridade. De um lado a imprensa, com o passar dos dias, criou um viés sensacionalista para as denúncias de abuso sexual e de outro Edélcio passava informações sem embasamento. Mais três denúncias surgiram. Os jornais se adiantavam ao inquérito policial, ou até traziam informações que nem lá constavam. Como na matéria do dia 31 de março do Jornal Nacional, que sugere o consumo de drogas durante as supostas orgias, ou a possibilidade de contágio com o vírus HIV, em decorrência dos abusos. O caso ficou conhecido. Inicialmente com acusações de molestar sexualmente duas crianças, os acusados terminaram a semana drogando, e, possivelmente, transmitindo Aids para as mesmas. Quando os acusados ganham espaço o delegado já se sentia confortável nas atitudes que tomava. Em 5 de abril ele pede a prisão preventiva de todos os suspeitos - mas isso não foi divulgado, a intenção era prendê-los de surpresa. Saulo e Mara são presos ao se apresentar para o suposto depoimento. São soltos três dias depois. A advogada do casal teve acesso ao laudo final do IML. A vista aconteceu acidentalmente uma vez que Edélcio não mostrava para ninguém a pasta do inquérito. O resultado do exame final: inconclusivo. As lesões encontradas poderiam ser atribuídas tanto a coito anal quanto a problemas intestinais (mais tarde, a segunda explicação seria confirmada). Lemos foi afastado do caso. Em seu lugar assumiram Jorge Carrasco e Gérson de Carvalho. A investigação foi reiniciada.
O americano e as manchetes
Uma denúncia anônima levou a polícia à casa de Richard Pedicini. Ele seria o contato internacional dos acusados filmando e fotografando crianças de várias idades e promovendo as orgias no seu casarão. Ele ficou preso nove dias. Nesse meio tempo nada provou a ligação com a Base. Gérson de Carvalho foi a público desmentir a ligação entre um caso e outro. Mesmo voltando atrás a imprensa já havia bombardeado as pessoas com notícias sensacionalistas. O Notícias Populares (hoje extinto) foi de longe o mais pejorativo dos veículos de mídia com manchetes do tipo: "Kombi era motel na escolinha do Sexo", "Americano taradão ataca na aclimação", "Perua escolar levava crianças pra orgia no maternal do sexo" e "Exame procura a Aids nos alunos da escolinha do sexo". A revista Veja publicou em 06 de abril: "Uma escola de horrores" e todos os jornais tratavam o caso de forma parcial. Se não expressamente, deixavam claro o teor "sensacional" dos fatos, o que contribuiu para a execração pública.
Enfim, inocentes
No dia 22 de junho Gérson inocentou os seis acusados. Ao contrário do que Edélcio disse quando perguntado sobre as provas: "Vocês ficam falando de provas, provas, o inquérito é a prova". O inquérito do Caso Escola Base foi arquivado, pois é um documento de apuração e investigação e ele nada continha que incriminasse os sete acusados. A conclusão do delegado: "se houve crime, este ocorreu em outro lugar e tendo outros personagens".
A opinião pública e a Escola Base
Onze anos após a absolvição legal, os acusados nunca mais tiveram paz. Suas vidas foram destruídas e nenhuma compensação financeira foi paga até hoje. "Acaba com o sujeito. Você não levanta mais não, amigo. Que nem eu, eu tô com 60 anos, rapaz, e tô aqui engatinhando. Estou pendurado no banco e até hoje estou pagando. Não tenho conta, não tenho cheque, não tenho porra nenhuma!", desabafa Icushiro Shimada. Com exceção da Folha de S. Paulo, que fez um seminário e escreveu um editorial mea culpa, nenhum outro veículo se retratou. Nesse trecho do editorial a Folha diz: "(...) sempre tratou os envolvidos como acusados ou suspeitos, evitando toda espécie de prejulgamento". Curioso é que não mencionam o jornal Notícias Populares, de propriedade do grupo Folha da Manhã (Empresa que publica a Folha de S. Paulo). A opinião pública, implacável e baseada em informações imprecisas de um caso envolvendo crianças, se posicionou contra os donos da Base. A seqüência da história foi um assassinato social: todos tiveram que abandonar suas casas para não receber castigos físicos, a escola foi depedrada e saqueada, a casa de Maurício e Paula teve o muro pichado - "Maurício estuprador de criancinhas" - e seus rostos ficaram marcados como molestadores de crianças.
Será que não perceberam?
Três detalhes chamam a atenção para os equívocos da mídia no caso: um delegado afirma que tem fotos e fitas de vídeo que mostram adultos fazendo sexo com os alunos, mas não mostra o material alegando que poderia prejudicar as investigações. As crianças foram interrogadas (crianças de quatro anos) sem a presença de um psicólogo e suas declarações tomadas como verdades absolutas e noticiadas sem o menor critério de apuração. E o laudo do Instituto Médico Legal (IML), ambíguo, e utilizado pelo delegado como prova cabal dos abusos quando, na realidade, as lesões no ânus de uma das crianças era compatível com a excreção de fezes ressecadas e, mais tarde, se confirmaria, eram conseqüência de um sério problema intestinal do garoto.
Os dias atuais
Em 95, Shimada, Paula e Maurício moveram uma ação por danos morais contra a Fazenda Pública (Estado). Eles ganharam nas duas primeiras instâncias e aguardam até hoje a sentença final que virá de Brasília. Isso pode levar mais alguns anos. Em 2003 foram processados também por danos morais os veículos Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo, Globo, SBT, Record, Rádio e TV Bandeirantes, revistas Veja e IstoÉ. Shimada teve três enfartes desde 94, fuma bastante e tem medo de andar na rua. Atualmente toca a vida numa xerox no centro de São Paulo. Sua esposa faz tratamento psicológico desde o episódio. Os outros acusados se mudaram para o interior. Os repórteres que cobriram o caso continuam suas vidas profissionais normalmente. Nenhum veículo foi punido, nenhuma desculpa foi dada com o mesmo espaço das acusações.
Thiago Domenici é jornalista da revista Caros Amigos e um dos autores do vídeo-documentário sobre o Caso da Escola Base. Contato: thiagodomenici@carosamigos.com.br.

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